terça-feira, 17 de maio de 2011

"Os portugueses deixam a língua nos trópicos" de Secos e Molhados (2000)


Um pedaço de pátria livre com minhas veias atlânticas
No mapa mestiço do meu corpo negro ou brasileiro
A mesma face enterrada no chão português da ibéria
E a mesma alma oceânica a caminho dos ventos

A mesma língua por dentro da língua falada nos espaços
Recônditos da alma morena dos antepassados recíprocos
Todos comuns ás virgens desfloradas pelos homens sem cor
Que punham lantejoulas no céu de cada ventre tropical

Ao sul das lânguidas praias margens da misteriosa atlântida
Quilhas rasgando os vendavais de cada aventura sem destino
Aí nasceram as bocas astrais para os signos dos deuses
Criando a mitologia dos afogados ao leme dos tempos

Resta essa lusíada chama agora liberta nas plagas continentais
Onde fermenta o sol no sal das obtusas claridades das sombras
Gerando a palavra nos corações misturados nos abismos das raças
Onde as pirâmides assinalam os sarcófagos do meu povo

Povo triturado pelas esferas e os cata-ventos imperdoáveis
Das bruxas que urdiram o maligno feitiço do império
E agora mortas expelem nas marés as fétidas fezes da história
Uma história que é preciso começar outra vez de zero

Um pedaço de pátria livre com essa chama lusíada
Líquida chama nos lábios de um futuro sem abortos
Expressão dos ventres da gestação austral
Ou das pequeninas ilhas dos golfos crioulos

Um beijo na boca do universo um beijo africano
Principalmente africano e brasileiro
Do zero ao êxtase um beijo íngreme na boca
Das líquidas palavras da mesma língua cósmica

Será uma fusão de asas salgadas pelas marés claras
Das praias assinaladas pelas âncoras ancestrais
E a mesma viagem andrógina dos bissexos da mesma pele
Desfraldando as bandeiras miscigenadas pelas lantejoulas

Um pedaço de pátria das pátrias procriadas
No mesmo verbo ardente de lírica melodia
Cantando amanhã as palavras somadas
Pelas gentes que esta língua em si mesmo procria

Meu sangue diluído nos poros do teu ser
Esse meu estar no mundo na tua pele sem cor
Colhendo os brasis nas selvas africanas
E as áfricas semeando no reino dos algarves

Quem será esse filho do grávido futuro
Que a tua boca oferece ao beijo redimido
Fecundado pelos séculos no mesmo chão sem pátria
Das pátrias do meu verbo do teu verbo nascido

Um pedaço uma gota uma única gota
Do teu perfil mestiço projetado nos astros
Singrando mares siderais á procura de rota
Os mares os mesmo mares nunca antes navegados

Que os despojos da história voltem ao restelo
Mas que essa chama livre para sempre viva
Num pedaço de pátria múltipla pátria amada
Feita de mil pedaços da alma do meu povo

Português em macau ou brasileiro em luanda
Africano da bahia ou crioulo europeu
Quando falas eu sei que nasceste de mim
Quando em mim nascias do meu pai do teu pai

Português infeliz nas andanças andadas
Palmilhou cicatrizes no rosto do tempo
E não sabe o que fazer das encruzilhadas
Nem das cruzes que pôs nas vertentes oblíquas

Português sem o gesto da própria mão direita
Decepadas nos becos das entranhas marinhas
(poentes de navalhas em horizontes mortos)
Com a vida esvaída nas correntes submersas

Português carregando os crepúsculos pesados
De uma podre velhice para estrumar a europa
Enforca-te no mar e nos próprios cabelos
Mas não morras deitado na cama da ibéria

Português que furaste os olhos ardentes
Para veres os confins dos confins da aventura
Não desistas agora das auroras urgentes
E volta para casa para nasceres de novo

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